Ana Sofia Bagulho1,2, José Moreira1,2, Rita Costa1,2, Nuno Pinheiro1,2, Conceição Gomes1, Ana Sofia Almeida1,2, Armindo Costa1, José Coutinho1,2, Benvindo Maçãs1,2

1 – INIAV – Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária, Polo de Elvas

2 – GeoBioTec – Universidade Nova de Lisboa, Campus da Caparica

As irregularidades interanuais do clima mediterrânio têm consequências ao nível do ciclo vegetativo do trigo duro e do seu potencial de produção, não afetando tão significativamente a qualidade. A promoção desta cultura passa pelo aumento da estabilidade de produção, com valorização da qualidade, através do recurso a variedades oriundas do melhoramento genético. A fertilização com aplicações fracionadas contribui para aumentar a eficiência de utilização do azoto por parte das plantas, potenciando a qualidade.

Enquadramento

Figura 1. Vista geral do ensaio, INIAV-Elvas, 2020

Em Portugal, a área ocupada com culturas cerealíferas tem vindo continuamente a decrescer, sendo que, em 2020 apenas se semearam 3 940 hectares com trigo duro (ANPROMIS, 2020).

Um dos principais problemas da produção agrícola de trigo na região mediterrânea é a irregularidade interanual ao nível da produção, que é fortemente condicionada pela instabilidade climática e pelos episódios de stresses abióticos de duração, frequência e intensidade variáveis. No entanto, a qualidade do grão para o fabrico de sêmolas e massas alimentícias é tendencialmente favorecida por este clima moderadamente seco, com temperaturas e número de horas de sol elevadas durante o período de enchimento do grão.

Para reverter esta tendência decrescente, é importante promover o aumento da estabilidade de produção deste cereal, através da utilização de variedades oriundas do melhoramento genético, mais adaptadas e com potencial genético de qualidade. A utilização cada vez mais eficiente dos fatores de produção, fertilização e rega também é essencial.  Neste sentido, a aplicação fracionada da fertilização azotada ao longo do ciclo vegetativo da cultura tem sido uma abordagem usual para a redução de perdas de azoto por lixiviação e para aumentar a sua eficiência por parte da planta (Pinheiro et al, 2000).

O azoto é o elemento essencial, que mais influencia o rendimento e a qualidade tecnológica do trigo, pois condiciona o desenvolvimento da planta e a acumulação de proteínas no grão. Na qualidade, o teor proteico do grão é o parâmetro mais determinante já que, de forma direta ou indireta, influencia outros parâmetros, como a vitreosidade, o teor e qualidade do glúten.

O trabalho aqui apresentado foi desenvolvido no âmbito do “Grupo Operacional – Valorização do Trigo Duro de Qualidade Superior para o Fabrico de Massas Alimentícias”. Pretende-se avaliar o efeito da variedade e da época de aplicação da fertilização azotada, em diversos parâmetros agronómicos e de qualidade do trigo duro, sob o efeito de variáveis climáticas extremas. Utilizaram-se cinco variedades de diferentes proveniências e cinco tratamentos com aplicação fracionada de azoto em função das principais fases fenológicas do trigo.

Ensaios Experimentais

Durante dois anos agrícolas 2018/19 e 2019/20, instalaram-se nos campos experimentais do INIAV-Elvas, ensaios em blocos casualizados com três repetições, com uma densidade de sementeira de 400 grãos viáveis/m2 e dois fatores em estudo: variedade e fertilização.

Utilizaram-se 5 variedades de várias proveniências: Fado e Vadio – portuguesas, Don Ricardo -espanhola, Anvergur – francesa, Claudio – italiana, e, 5 modalidades de fertilização azotada, tendo-se aplicado 150 UN/ha fracionados em função das fases fenológicas da cultura (Figura 2).

O recurso a regas suplementares de apoio ocorreu de modo a manter a cultura em conforto hídrico durante o seu ciclo de desenvolvimento.

Figura 2. Tratamentos de fertilização dos ensaios: adubos utilizados em cada época e seu fracionamento. Total/ tratamento=150 UN/ha (exceto em T0).

Clima nos dois anos agrícolas 2018/19 e 2019/20

Nas Figuras 3 e 4 apresentam-se as condições meteorológicas que ocorreram durante os dois anos de ensaios: a distribuição intra-anual da precipitação e o registo diário das temperaturas máximas e mínimas ocorridas desde a sementeira dos ensaios até ao momento da sua colheita, sendo também assinaladas as regas suplementares realizadas.

Figura 3. Temperaturas e precipitação registadas em Elvas em 2018/19: Precipitação de inverno 44,0 mm; Precipitação de primavera: 85,7 mm; Regas: 82 mm. Tmáx acima de 25 °C: 5 dias em abril e 24 dias em maio. Indica-se o intervalo em que ocorreu o início das fases fenológicas para o conjunto de variedades.

Figura 4. Temperaturas e precipitação registadas em Elvas em 2019/20. Precipitação de inverno: 142,6 mm; Precipitação de primavera: 277,6 mm; Regas: 20 mm. Tmáx acima de 25 °C: 1 dia em abril e 20 dias em maio. Indica-se o intervalo em que ocorreu o início das fases fenológicas para o conjunto de variedades.

O ano agrícola 2018/19 foi um ano seco, com apenas 130 mm de precipitação desde a sementeira (janeiro) até ao final do ciclo da cultura (junho), com uma distribuição irregular, tendo que se iniciar as regas de apoio antes do encanamento. Durante o mês de março registaram-se 23 dias com temperaturas máximas superiores a 20-25°C, o que contribuiu para acelerar o desenvolvimento vegetativo do trigo. Posteriormente, durante a fase do enchimento do grão, verificaram-se 12 dias com temperaturas máximas iguais ou superiores a 30°C, penalizantes para o correto desenvolvimento do grão.

O ano agrícola 2019/20 foi um ano bastante contrastante em relação ao anterior, com um total de 420 mm de precipitação durante o ciclo da cultura, de grande incidência na primavera, pelo que apenas se realizaram duas regas de apoio. As temperaturas primaveris também foram mais amenas, o que beneficiou o desenvolvimento vegetativo e reprodutivo das plantas e o enchimento do grão.

Resultados

Em 2019/20 uma data de sementeira mais precoce (Tabela 1), provocou uma antecipação na data de espigamento de todas as variedades comparativamente a 2018/19 (entre 11 a 26 dias). Este aspeto, associado a condições metereológicas favoráveis durante o período de formação e desenvolvimento do grão, levaram a um alongamento do ciclo e do período de enchimento do grão (12 dias no caso do Anvergur, a 21-22 dias no caso do Don Ricardo e Claudio), com repercussões ao nível do seu peso (8 a 11 g superior em 2019/20) (Tabela 2).

Tabela 1: Comportamento fenológico das variedades estudadas nos dois anos 2018/19 e 2019/20: data de espigamento, duração do ciclo e período de enchimento do grão.

Os valores de produção (Tabela 2) foram claramente superiores em 2019/20, pois para além do peso do grão, os restantes componentes da produção que afetam o número de grãos/m2, também beneficiaram das condições meteorológicas ocorridas durante a primavera. Dos fatores, variedade e fertilização fracionada, apenas a variedade influenciou significativamente estes parâmetros. A variedade Anvergur, de tipo facultativo/alternativo, apresentou datas de espigamento mais tardias, e, relativamente às outras variedades,destacou-se por ser a mais produtiva nos dois anos. Uma das características principais do Anvergur é o tamanho da espiga (nº de espiguetas/espiga) (dado não apresentado), que se reflete no número de grãos/m2 e no rendimento final (Tabela 2), apesar do peso do grão ser o mais baixo nos dois anos.

As condições meteorológicas ocorridas em 2018/19 penalizaram, de um modo geral, mais a produção (Tabela 2) do que a qualidade dos trigos duros avaliados (Tabelas 3 e 4).

Tabela 2: Efeito da variedade e do fracionamento da fertilização no peso de mil grãos (PMG), número de grãos/m2 e produção nos dois anos 2018/19 e 2019/20.

Os valores de teor proteico foram mesmo superiores em 2018/19 devido a dois efeitos conjuntos: maior disponibilidade de azoto para o enchimento do grão, como consequência dos menores valores de rendimento obtidos e menor peso do grão, como consequência do stresse térmico ocorrido durante o seu enchimento que afetou mais a deposição de amido do que das proteínas. Os fatores estudados, variedade e fertilização fracionada, foram determinantes para a variação do teor de proteína (Tabela 3). A resposta das variedades na acumulação de proteína no grão foi diferente nos dois anos, com a variedade Claudio a destacar-se em 2018/19 e Fado em 2019/20. As aplicações mais tardias de fertilizante azotado (T2, T3 e T4) conduziram a uma maior mobilização deste elemento para o grão.

Na massa do hectolitro (Tabela 3) não se observaram diferenças acentuadas entre os dois anos, com valores compreendidos entre 80,4 kg/hl e 85,6 kg/hl, indicadores de uma boa adaptação das variedades, com o Anvergur a apresentar os valores mais baixos. Este parâmetro, conjuntamente com a vitreosidade, constitui o principal indicador do rendimento em sêmolas. Foi maioritariamente influenciado pela variedade, com destaque para Claudio e Vadio nos dois anos agrícolas.

A vitreosidade (Tabela 3) é uma característica do trigo duro, cuja perda/decréscimo leva ao enfraquecimento da estrutura do grão, devido ao aparecimento de espaços preenchidos por ar. Está normalmente associada à ocorrência de precipitação durante a maturação do grão, pelo que apenas em 2019/20 se observaram diferenças mais acentuadas. As variedades não apresentaram a mesma suscetibilidade à perda desta característica, sendo os trigos Claudio e Anvergur os mais afetados. Também se observaram diferenças ao nível dos tratamentos de fertilização fracionada, pois os que originaram maiores valores de teor proteico também estiveram associados a maiores valores de vitreosidade. Portanto, grãos com maior teor proteico ficam mais protegidos contra a perda de vitreosidade em variedades mais suscetíveis.

Tabela 3: Efeito da variedade e do fracionamento da fertilização na massa do hectolitro, na proteína e na vitreosidade do grão nos dois anos 2018/19 e 2019/20.

Tabela 4: Efeito da variedade e do fracionamento da fertilização no teor e parâmetros indicadores da qualidade de glúten – índice de glúten e SDS nos dois anos 2018/19 e 2019/20

Quanto ao teor de glúten (Tabela 4), a fertilização fracionada foi o fator que mais influenciou este parâmetro, com as aplicações mais tardias de fertilizante (T2, T3 e T4) a beneficiaram a acumulação de proteínas totais do grão e, dentro destas, as que formam o glúten. Tal como no teor proteico, as variedades Claudio e Fado foram as que mais se destacaram, respetivamente, em 2018/19 e 2019/20.

O índice de glúten e o teste de sedimentação SDS (Tabela 4) são indicadores da qualidade das proteínas do glúten que constituem cada variedade sendo, portanto, parâmetros com maior cariz varietal. O grupo de variedades estudadas foi bastante homogéneo em termos de qualidade do glúten, destacando-se ligeiramente a variedade Vadio.

Conclusões

No presente estudo, a variedade foi o fator que mais afetou a variação da produção e dos parâmetros com ela relacionados, sendo a maioria das características de qualidade influenciadas pela variedade e pela fertilização fracionada. Os tratamentos de fertilização com aplicações mais tardias (T2, T3 e T4), conduziram a uma maior mobilização do azoto para o grão e, consequentemente, maiores valores de proteína, vitreosidade e teor de glúten.

Os parâmetros indicadores da qualidade do glúten (índice de glúten e volume SDS) foram mais influenciados pela variedade, embora não se tenham notado diferenças muito acentuadas.

Os resultados contrastantes obtidos nos dois anos estudados demonstram a enorme influência da variabilidade climática, típica do clima mediterrânico do sul de Portugal, no rendimento e em menor escala na qualidade do trigo duro.

Agradecimentos

Este estudo foi suportado pelo projeto Valorização do Trigo Duro de Qualidade Superior para o Fabrico de Massas Alimentícias, Ação 1.1 – Grupos Operacionais, PDR2020

Bibliografia

Pinheiro, N.; Costa, R.; Gomes, C.; Bagulho, A.S; Coutinho, J.; Moreira, J.; Coco, J.; Costa, A.; Almeida, A.S; Maçãs, B. (2020). Vida Rural, Nº 1854, Ano 67, fev 2020: 32-36.

O Grupo dos Cereais do INIAV-Polo Elvas, para além do melhoramento genético vegetal e da conservação in vivo dos recursos genéticos, tem como função investigar e resolver problemas da fileira dos cereais. Atualmente, em conjunto com outras instituições, promove uma série de iniciativas com resultados importantes no setor dos cereais e na economia nacional.

Figura 1 – Ensaios realizados nos campos do INIAV-Elvas

O consumo quase omnipresente de cereais confere-lhes uma posição privilegiada na nutrição mundial. As projeções atuais preveem que, em 2050, a população mundial atinja mais de 9 mil milhões de pessoas e que, até lá, a procura por alimentos deverá aumentar cerca de 70%, o que exigirá um aumento na produção de cereais.

Na Europa, o trigo é o cereal mais consumido (109 kg/capita/ano), fornecendo diariamente cerca de 16 g de proteína per capita, valor que poderá aumentar nas áreas urbanas e nos países menos desenvolvidos, onde se preveem maiores crescimentos demográficos.

Em Portugal, o cenário no setor dos cereais não é muito favorável, já que a área ocupada com culturas cerealíferas tem vindo a decrescer continuamente. Nos últimos anos as produções por hectare, devido aos constrangimentos climáticos e ao ressurgimento de certas doenças, não têm sido muito elevadas, sendo atualmente o nível de autoaprovisionamento inferior a 30% (no trigo passou de 49% para menos de 4%).

Os programas de melhoramento de cereais focam-se no desenvolvimento de novas variedades mais produtivas, com plasticidade de adaptação num contexto de alterações climáticas, resistentes/tolerantes a doenças e de melhor qualidade, para darem resposta à procura de produtos finais otimizados e nutricionalmente mais ricos, destinados a alimentar a população mundial crescente.

Aumentar a produtividade

Os aumentos de rendimento na produção de cereais terão de ser alcançados com recurso a variedades mais adaptadas, com melhor resposta produtiva aos riscos climáticos em ambiente mediterrânico e mais resistentes às doenças e pragas prevalecentes.

Neste contexto, o Programa de Melhoramento de Cereais do INIAV tem desenvolvido um trabalho contínuo de seleção de novas variedades que tentam dar resposta às questões anteriores. Pretendem-se variedades mais eficientes a produzir em condições ambientais irregulares, ou seja, com um potencial genético que lhes permita limitar a quebra de produção em anos secos, e usufruir de um final de ciclo mais ameno e com maior humidade. Na tabela 1 apresentam-se as variedades de cereais mais recentemente inscritas, ou em fase de candidatura ao Catálogo Nacional de variedades.

Tabela 1 – Variedades de cereais do INIAV inscritas ou em candidatura ao CNV.

Melhorar a rentabilidade da produção de uma forma sustentável

Nesta linha, o INIAV-Elvas tem realizado inúmeros estudos, que pretendem selecionar e validar as melhores opções agronómicas, assentes no recurso eficiente dos fatores de produção (água e azoto).

Exemplo disso, são vários os projetos e iniciativas desenvolvidas em parceria com outras Instituições e diversas Organizações de Produtores, como é o caso do projeto “Valorização de trigo-duro de qualidade superior para o fabrico de massas alimentícias”, ou da “Formação técnica para produção de cereais de outono/inverno visando a rentabilidade e estabilidade de produção”.

Estes projetos têm permitido testar diferentes soluções técnicas adequadas à produção de cereais de outono/inverno de qualidade, discutir a sua eficiência e transferir o conhecimento adquirido aos agricultores de modo eficaz.

Valorizar e diferenciar a qualidade tecnológica

O conceito de qualidade de um cereal, ou seja, a aptidão para ser transformado e produzir um bom produto final, é bastante complexo e abrangente, uma vez que reflete os requisitos inerentes a toda a cadeia de valor.

Depende da gama de produtos finais (trigo-mole), diferentes interesses dos players da cadeia de valor, evolução tecnológica do processamento, questões culturais, tendências sociais, etc.

De entre os cereais, o trigo assume o principal destaque, pois possui características funcionais únicas, que lhe conferem uma enorme versatilidade de utilização no fabrico de diversos produtos, cada um com um perfil de especificações bem diferentes (Figura 2).

Figura 2 – Diversidade de produtos obtidos a partir do trigo definidos em função dos requisitos de dureza, força (W), e teor proteico [1]

A qualidade do trigo é definida com base numa série de requisitos que condicionam o rendimento em farinha ou sêmola, o processamento industrial e as características dos produtos finais.

A escolha da variedade de trigo tem um papel fundamental na garantia da qualidade, mas o uso adequado dos fatores de produção é fundamental para que ocorra uma expressão máxima do potencial de qualidade.

É necessário ajustar o itinerário técnico em função do ano agrícola e ter em conta que a dicotomia produtividade/qualidade tecnológica não evolui no mesmo sentido, pelo que adubações mais tardias são aconselháveis a uma adequada acumulação de proteína no grão e obtenção de um trigo de elevada qualidade.

A valorização dos cereais em Portugal passará sempre pela qualidade. Os cereais têm de se diferenciar, para fazer frente aos cereais de outras proveniências. Neste contexto, é importante definir estratégias que envolvam toda a cadeia de valor e estimulem a produção nacional.

A LVR – Lista de variedades recomendada de trigo de qualidade é uma das iniciativas que mais se tem destacado. A recomendação de variedades baseada em informação independente, através de uma lista corroborada por todos os elementos desta fileira, surge da inevitabilidade de melhorar a competitividade do trigo nacional, diminuindo a grande dispersão de variedades existentes e se obterem lotes de grão mais homogéneos, de maior dimensão e qualidade. A LVR é, atualmente, uma importante ferramenta de apoio para os agricultores.

Outra abordagem que contribui para a valorização e diferenciação da qualidade, é a criação de produtos certificados que acrescentam valor aos cereais, através da sua rastreabilidade ou identidade.

Um exemplo de sucesso neste setor foi a criação da marca “Cereais do Alentejo” que tem aumentado a incorporação de trigo nacional no fabrico de diversos produtos (pão, massa, cerveja e farinha de uso culinário), certificados e elaborados com os cereais do Alentejo. O consórcio inicial envolveu um agrupamento de produtores, uma empresa de primeira transformação e uma panificadora, que, apoiados pelo Clube de Produtores do Continente, transformou mais de 200 toneladas de trigo em pães certificados. O conceito tem-se alargado a outros membros e gama de produtos e a incorporação de trigo nacional tem aumentado consideravelmente.

Figura 4 – A marca “Cereais do Alentejo”

Valorizar a qualidade nutricional

A mudança dos padrões alimentares e a crescente consciencialização da influência do sedentarismo na qualidade de vida levou à necessidade de se reconsiderar, numa perspetiva mais sustentável e nutricional, a qualidade dos alimentos à base de cereais.

Os cereais, quando consumidos na sua forma integral, possuem uma elevada qualidade nutricional, constituindo uma importante fonte de calorias, proteínas, fibra dietética,

vitaminas (em particular do complexo B), minerais e antioxidantes.

Os principais estudos de epidemiologia alimentar mostram associações inequívocas entre o aumento do consumo de grãos na forma integral ou de fibra oriunda dos cereais e benefícios específicos para a saúde humana. Por este motivo, existem atualmente vários avisos (EFSA Claims e outros) que visam aumentar o seu consumo, como meio de promover o controle glicémico (diabetes e obesidade), a regulação do colesterol, a prevenção de doenças cardíacas e a redução do risco de alguns tipos de cancro.

Esta corrente de valorização nutricional dos cereais está a ganhar importância em toda a Europa, com um mercado em expansão para o desenvolvimento de novos produtos onde os nutrientes e compostos bioativos, naturalmente presentes nos cereais, sejam preservados. Na mesma linha está também a expansão do segmento de mercado dos produtos biológicos, devido à sua procura crescente por parte dos consumidores.

Em Portugal, esta tendência tem levado ao aparecimento de uma nova geração de padeiros que pretendem retomar o antigo conceito de panificação tradicional como forma de produzir pães nutricionalmente mais ricos. Privilegiam os trigos nacionais atuais ou ancestrais, moendas mais artesanais (frequentemente com mós de pedra).

Também neste nicho de mercado, o grupo de Cereais do INIAV-Elvas tem contribuído para a valorização do trigo nacional ao colaborar com várias entidades que exploram esta vertente da panificação.

O papel do INIAV na estratégia de valorização dos cereais nacionais é reconhecido pelos diversos players do sector. Nos últimos anos, tem-se assistido a importantes avanços no trabalho desenvolvido, nomeadamente na interligação entre os membros das diferentes fileiras, conseguindo realizar-se uma investigação aplicada às necessidades reais dos seus intervenientes.

Esta linha de ação está em consonância com a Estratégia Nacional para a Promoção da Produção de Cereais que pretende reduzir a dependência externa, consolidar e aumentar as áreas de produção, viabilizar a atividade agrícola em todo o território e criar valor no sector dos cereais.

Ana Sofia Bagulho1,3, José Moreira1,3, Rita Costa1,3, Nuno Pinheiro1,3, Conceição Gomes1, Ana Sofia Almeida1,3, Armindo Costa1, José Coutinho1,3, José Dôres2, Natividade Costa2, Manuel Patanita2,3, Benvindo Maçãs1,3

1 – INIAV – Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária, Polo de Elvas

2- I.P. Beja/ESA – Instituto Politécnico de Beja, Escola Superior Agrária, Departamento de Biociências

3 – GeoBioTec – Universidade Nova de Lisboa, Campus da Caparica

O trigo duro é uma cultura com grande importância em toda a bacia mediterrânica, concentrando-se nesta região grande parte da produção mundial desta espécie. A especificidade ambiental do clima mediterrânico condiciona muito a produtividade e os parâmetros de qualidade, com enormes flutuações quer anuais intra e interanuais. Para além do ajustamento dos itinerários técnicos a este padrão ambiental, o melhoramento genético tem contribuído para a obtenção de variedades mais adaptadas, mas não conseguiu, ainda, colmatar a enorme influência da expressão genótipo x ambiente nos ambientes mediterrânicos.

Enquadramento

A qualidade do trigo duro para o fabrico de sêmolas e massas alimentícias é, tendencialmente, favorecida pelo clima moderadamente seco, com temperaturas e número de horas de sol elevadas durante o período de enchimento do grão, típico do sul de Portugal.

A qualidade do trigo duro reflete requisitos de toda a cadeia de valor. É definida em função de parâmetros tecnológicos determinados ao nível do grão, que se relacionam com o rendimento em sêmolas (massa do hectolitro, vitreosidade, teor de cinzas), processamento (teor proteico, teor e qualidade do glúten) e características requeridas ao nível do produto final (coloração, integridade, ausência de defeitos). Alguns destes parâmetros são considerados características essenciais para a sua transformação tecnológica, pelo que se usam na comercialização como especificações (Tabela 1). O teor proteico e a vitreosidade são os mais discriminantes entre as várias classes tecnológicas de trigo.

Tabela 1: Especificações utilizadas na definição das duas classes de trigo-duro comercialmente consideradas em Portugal.

Apesar do determinismo genético associado aos parâmetros de qualidade do trigo duro, existe uma enorme influência ambiental que, anualmente, condiciona a qualidade de cada campanha. O principal problema é a instabilidade e irregularidade interanual do clima mediterrânico, com episódios de stresses abióticos de duração, frequência e intensidade variáveis e que condicionam, fortemente, a produção e a qualidade. Para além disso, a fertilização também é fundamental para a expressão do potencial genético de cada variedade, já que o azoto afeta o desenvolvimento da planta e a acumulação de proteínas no grão que, de forma direta ou indireta, influencia outros parâmetros, como a vitreosidade do grão, o teor e a qualidade do glúten.

Ensaios Experimentais

Durante dois anos agrícolas 2018/19 e 2019/20, instalaram-se nos campos experimentais do INIAV-Elvas (Figura 1) e I.P. Beja, ensaios em blocos casualizados com três repetições, com uma densidade de sementeira de 400 grãos viáveis/m2 e dois fatores em estudo: variedade e fertilização.

Figura 1. Vista geral do ensaio, INIAV-Elvas.

Utilizaram-se cinco modalidades de fertilização azotada, tendo-se aplicado 150 UN/ha fracionadas em função das fases fenológicas da cultura (Figura 2). Recorreram-se a regas suplementares de apoio durante o seu ciclo de desenvolvimento. As variedades utilizadas são apresentadas na Tabela 2.

As 480 amostras obtidas nos dois anos foram analisadas quanto ao peso de mil grãos, massa do hectolitro, teor de proteína e vitreosidade do grão de modo a estudar a influência dos fatores ensaiados (variedade, tratamento) tendo em conta sua interação com o ambiente. 

Tabela 2: Variedades utilizadas nos ensaios.

Figura 2. Tratamentos de fertilização azotada dos ensaios: adubos utilizados em cada época e seu fracionamento. Dose de N = 150 UN/ha (exceto em T0).

Condições meteorológicas no período de enchimento do grão

Nas Figuras 3 a, b, c e d apresentam-se as condições meteorológicas, precipitação, temperaturas máximas e mínimas diárias, ocorridas durante o período de enchimento do grão das variedades nos ensaios realizados (2 anos, 2 locais).

Figura 3a, b, c e d. Temperaturas e precipitação registadas em Elvas e Beja durante o período de enchimento do grão nos quatro ensaios realizados.

O ano agrícola 2018/19 foi extremamente seco nos dois locais: apenas ocorreram entre a sementeira e o final do ciclo da cultura 130 mm de precipitação em Elvas e 166 mm em Beja. Em Elvas, ocorreram 41 mm de precipitação e realizaram-se 52 mm de água em regas de apoio concentradas na primeira metade do período de enchimento do grão. Em Beja, como não ocorreu precipitação, realizaram-se neste período sete regas de apoio, num total de 100 mm

No período primaveril, durante o enchimento do grão, as temperaturas foram altas, verificando-se muitos dias com temperaturas máximas iguais ou superiores a 30°C as quais penalizaram o adequado desenvolvimento do grão (em Elvas 17 dias e em Beja 18 dias). Em Elvas a média das máximas rondou os 22°C em abril e os 29°C em maio, enquanto em Beja rondou os 26°C na última semana de abril, os 29°C em maio e primeiros dias de junho.

O ano 2019/20 foi bastante contrastante em relação ao anterior, com temperaturas amenas e ocorrência de precipitação bem distribuída. Durante o ciclo da cultura ocorreram 498 mm de precipitação em Elvas e 319 mm em Beja. No período de enchimento do grão registaram-se 218 mm de precipitação em Elvas e 12 dias com temperaturas máximas superiores a 30°C que se concentraram no final de maio. Em Beja, a situação foi semelhante quanto à temperatura, com 14 dias de temperaturas máximas acima de 30°C, que se concentraram no final de maio, mas a ocorrência de precipitação foi menor (113 mm), pelo que realizaram duas regas de apoio (total 23 mm).

No primeiro ano, as plantas sofreram stress térmico e hídrico durante grande parte do período de enchimento do grão, enquanto o segundo ano foi bastante ameno, com condições extremas apenas na última fase de maturação do grão.

Resultados

Na Tabela 3 apresentam-se os resultados médios de duração do enchimento do grão e peso de mil grãos para as diferentes variedades provenientes do ensaio de Elvas e Beja, nos dois anos agrícolas.

Tabela 3: Valores médios de duração do período de enchimento do grão e peso de mil grãos das variedades estudadas nos quatro ensaios realizados.

O segundo ano foi mais favorável à correta formação e desenvolvimento do grão, pois provocou um alongamento deste período para todas as variedades nos dois locais de ensaio. Este alongamento apenas se refletiu no peso de mil grãos das variedades do ensaio de Elvas. Em Beja esta variação não se verificou, talvez, devido à subida brusca da temperatura máxima com menores valores de precipitação verificadas no enchimento do grão.

Nas tabelas 4 e 5 apresentam-se os resultados da análise de variância dos parâmetros de qualidade, para os dois anos analisados em separado. Os valores de F mostram que os três fatores (variedade, fertilização e local) influenciaram significativamente os parâmetros de qualidade estudados, tanto de forma individual como através das suas interações, ou seja, a resposta das variedades e dos tratamentos divergiu nos dois locais (interação genótipo x ambiente).

Tabela 4: Análise de variância (valores do teste F) do peso de mil grãos (PMG), massa do hectolitro, teor de proteína e vitreosidade do grão para o ano de 2018/19. Modelo com três fatores de variação (variedade, fertilização, local) e suas interações.

Tabela 5: Análise de variância (valores do teste F) do peso de mil grãos (PMG), massa do hectolitro, teor de proteína e vitreosidade do grão para o ano de 2019/20. Modelo com três fatores de variação (variedade, fertilização, local) e suas interações.

O local, estando implícitas as diferenças meteorológicas observadas durante o ciclo da cultura, foi o fator que mostrou ter maior influência na variação de todos os parâmetros de qualidade, com exceção do teor proteico observado no ensaio de 2019/20.

Em 2018/19, os valores de proteína, vitreosidade e hectolitro foram mais elevados em Elvas e o peso de mil grãos em Beja (Figuras 4a e b). Em 2019/20 a vitreosidade, o hectolitro e o peso de mil grãos foram mais elevados em Elvas do que em Beja (Figuras 5a e b).

A variedade foi o segundo fator mais determinante para explicar a variação do peso de mil grãos e massa do hectolitro nos dois anos, bem como a proteína e a vitreosidade em 2019/20 (Tabelas 4 e 5).

Don Ricardo destacou-se pelo peso de mil grãos nos dois locais e nos dois anos, juntamente com a variedade Fado em Beja (em 2018/19 e 2019/20) e Trimulato em Elvas (em 2019/20) (Figuras 4b e 5b).

As variedades Vadio e Claudio destacaram-se ao nível da massa do hectolitro em todos os ensaios, juntamente com as variedades Celta e Don Ricardo apenas em dois dos ensaios (Figuras 4b e 5b), o que é um bom indicador da sua adaptação aos dois ambientes.

Relativamente à vitreosidade, característica cujo decréscimo leva ao enfraquecimento da estrutura do grão devido ao aparecimento de espaços preenchidos por ar, verificou-se que os ensaios de Beja apresentam maiores diferenças entre variedades, com Don Ricardo a destacar-se nos dois anos e as variedades Trimulato e Celta em 2018/19. Em Elvas ocorreram menores diferenças entre variedades (quase todas com vitreosidade acima de 90), com exceção de Claudio, Sculptur, Anvergur (variedades de ciclo mais longo) que tiveram valores significativamente inferiores no ensaio de 2019/20, como também se verificou nos ensaios de Beja (Figura 4a e 5a).

Figura 4a, b, c e d. Resultados dos ensaios de Elvas (E) e Beja (Bj) em 2018/19. Valores médios a) de proteína e vitreosidade e b) de peso de mil grãos e hectolitro das diferentes variedades. Valores médios c) de proteína e vitreosidade e d) de peso de mil grãos e hectolitro dos diversos tratamentos de fertilização.

Os fatores, local seguido da fertilização, foram os que mais influenciaram a variação da proteína em 2018/19 (Tabela 4). A importância do local neste ano foi uma consequência das diferenças nas produtividades do ensaio de Beja e Elvas (dados não apresentados), que originaram menores teores proteicos em Beja (Figuras 4a) devido ao efeito de diluição da proteína pela maior quantidade de grãos. Em 2019/20 os fatores mais determinantes na variação da proteína foram a fertilização e a variedade (Tabelas 5). A variedade Trimulato apresenta, de modo consistente, maior valor de proteína nos dois locais e nos dois anos (Figuras 4a e 5a).

Ao nível da fertilização, verifica-se que as aplicações mais tardias de azoto (T2, T3 e T4) conduziram a uma maior mobilização do azoto para o grão e, consequentemente, maiores valores de proteína e vitreosidade nos dois anos (Figuras 4c e 5c). Portanto, grãos com maior teor proteico ficam mais protegidos contra a perda de vitreosidade. A sua influência, apesar de menor, também foi significativa no peso de mil grãos e massa do hectolitro (Figuras 4d e 5d).

Figura 5a, b, c e d. Resultados dos ensaios de Elvas (E) e Beja (Bj) em 2019/20. Valores médios a) de proteína e vitreosidade e b) de peso de mil grãos e hectolitro das diferentes variedades. Valores médios c) de proteína e vitreosidade e d) de peso de mil grãos e hectolitro dos diversos tratamentos de fertilização.

Conclusões

Os resultados obtidos nos dois anos de ensaios demonstram a enorme influência da variabilidade climática, típica do clima mediterrânico do sul de Portugal na qualidade do trigo duro.

Para além disso, apesar de haver uma forte componente genética (influência da variedade) na determinação dos quatro parâmetros de qualidade do trigo duro analisados (peso de mil grãos, massa do hectolitro, teor de proteína e vitreosidade do grão) a fertilização, com épocas de aplicação mais tardias no ciclo de desenvolvimento da cultura, mostrou-se indispensável à expressão do potencial genético de qualidade. Há, ainda, uma enorme influência ambiental que, neste estudo, se sobrepôs ao próprio efeito varietal.

As interações variedade x local e tratamento x local influenciaram significativamente os parâmetros de qualidade, o que demonstra a complexidade da expressão do potencial de qualidade do trigo duro.

Agradecimentos

Este estudo foi suportado pelo projeto Valorização do Trigo Duro de Qualidade Superior para o Fabrico de Massas Alimentícias, Ação 1.1 – Grupos Operacionais, PDR2020

COTR. (2020) – Sistema Agrometeorológico para a Gestão da Rega no Alentejo (SAGRA). Centro Operativo e de Tecnologia de Regadio (COTR), Quinta da Saúde, Beja, [cit. 2020-10-04]. <http:// www.cotr.pt/servicos/sagranet.php >