Ana Sofia Bagulho1,3, José Moreira1,3, Rita Costa1,3, Nuno Pinheiro1,3, Conceição Gomes1, Ana Sofia Almeida1,3, Armindo Costa1, José Coutinho1,3, José Dôres2, Natividade Costa2, Manuel Patanita2,3, Benvindo Maçãs1,3
1 – INIAV – Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária, Polo de Elvas
2- I.P. Beja/ESA – Instituto Politécnico de Beja, Escola Superior Agrária, Departamento de Biociências
3 – GeoBioTec – Universidade Nova de Lisboa, Campus da Caparica
O trigo duro é uma cultura com grande importância em toda a bacia mediterrânica, concentrando-se nesta região grande parte da produção mundial desta espécie. A especificidade ambiental do clima mediterrânico condiciona muito a produtividade e os parâmetros de qualidade, com enormes flutuações quer anuais intra e interanuais. Para além do ajustamento dos itinerários técnicos a este padrão ambiental, o melhoramento genético tem contribuído para a obtenção de variedades mais adaptadas, mas não conseguiu, ainda, colmatar a enorme influência da expressão genótipo x ambiente nos ambientes mediterrânicos.
Enquadramento
A qualidade do trigo duro para o fabrico de sêmolas e massas alimentícias é, tendencialmente, favorecida pelo clima moderadamente seco, com temperaturas e número de horas de sol elevadas durante o período de enchimento do grão, típico do sul de Portugal.
A qualidade do trigo duro reflete requisitos de toda a cadeia de valor. É definida em função de parâmetros tecnológicos determinados ao nível do grão, que se relacionam com o rendimento em sêmolas (massa do hectolitro, vitreosidade, teor de cinzas), processamento (teor proteico, teor e qualidade do glúten) e características requeridas ao nível do produto final (coloração, integridade, ausência de defeitos). Alguns destes parâmetros são considerados características essenciais para a sua transformação tecnológica, pelo que se usam na comercialização como especificações (Tabela 1). O teor proteico e a vitreosidade são os mais discriminantes entre as várias classes tecnológicas de trigo.
Tabela 1: Especificações utilizadas na definição das duas classes de trigo-duro comercialmente consideradas em Portugal.
Apesar do determinismo genético associado aos parâmetros de qualidade do trigo duro, existe uma enorme influência ambiental que, anualmente, condiciona a qualidade de cada campanha. O principal problema é a instabilidade e irregularidade interanual do clima mediterrânico, com episódios de stresses abióticos de duração, frequência e intensidade variáveis e que condicionam, fortemente, a produção e a qualidade. Para além disso, a fertilização também é fundamental para a expressão do potencial genético de cada variedade, já que o azoto afeta o desenvolvimento da planta e a acumulação de proteínas no grão que, de forma direta ou indireta, influencia outros parâmetros, como a vitreosidade do grão, o teor e a qualidade do glúten.
Ensaios Experimentais
Durante dois anos agrícolas 2018/19 e 2019/20, instalaram-se nos campos experimentais do INIAV-Elvas (Figura 1) e I.P. Beja, ensaios em blocos casualizados com três repetições, com uma densidade de sementeira de 400 grãos viáveis/m2 e dois fatores em estudo: variedade e fertilização.
Figura 1. Vista geral do ensaio, INIAV-Elvas.
Utilizaram-se cinco modalidades de fertilização azotada, tendo-se aplicado 150 UN/ha fracionadas em função das fases fenológicas da cultura (Figura 2). Recorreram-se a regas suplementares de apoio durante o seu ciclo de desenvolvimento. As variedades utilizadas são apresentadas na Tabela 2.
As 480 amostras obtidas nos dois anos foram analisadas quanto ao peso de mil grãos, massa do hectolitro, teor de proteína e vitreosidade do grão de modo a estudar a influência dos fatores ensaiados (variedade, tratamento) tendo em conta sua interação com o ambiente.
Tabela 2: Variedades utilizadas nos ensaios.
Figura 2. Tratamentos de fertilização azotada dos ensaios: adubos utilizados em cada época e seu fracionamento. Dose de N = 150 UN/ha (exceto em T0).
Condições meteorológicas no período de enchimento do grão
Nas Figuras 3 a, b, c e d apresentam-se as condições meteorológicas, precipitação, temperaturas máximas e mínimas diárias, ocorridas durante o período de enchimento do grão das variedades nos ensaios realizados (2 anos, 2 locais).
Figura 3a, b, c e d. Temperaturas e precipitação registadas em Elvas e Beja durante o período de enchimento do grão nos quatro ensaios realizados.
O ano agrícola 2018/19 foi extremamente seco nos dois locais: apenas ocorreram entre a sementeira e o final do ciclo da cultura 130 mm de precipitação em Elvas e 166 mm em Beja. Em Elvas, ocorreram 41 mm de precipitação e realizaram-se 52 mm de água em regas de apoio concentradas na primeira metade do período de enchimento do grão. Em Beja, como não ocorreu precipitação, realizaram-se neste período sete regas de apoio, num total de 100 mm
No período primaveril, durante o enchimento do grão, as temperaturas foram altas, verificando-se muitos dias com temperaturas máximas iguais ou superiores a 30°C as quais penalizaram o adequado desenvolvimento do grão (em Elvas 17 dias e em Beja 18 dias). Em Elvas a média das máximas rondou os 22°C em abril e os 29°C em maio, enquanto em Beja rondou os 26°C na última semana de abril, os 29°C em maio e primeiros dias de junho.
O ano 2019/20 foi bastante contrastante em relação ao anterior, com temperaturas amenas e ocorrência de precipitação bem distribuída. Durante o ciclo da cultura ocorreram 498 mm de precipitação em Elvas e 319 mm em Beja. No período de enchimento do grão registaram-se 218 mm de precipitação em Elvas e 12 dias com temperaturas máximas superiores a 30°C que se concentraram no final de maio. Em Beja, a situação foi semelhante quanto à temperatura, com 14 dias de temperaturas máximas acima de 30°C, que se concentraram no final de maio, mas a ocorrência de precipitação foi menor (113 mm), pelo que realizaram duas regas de apoio (total 23 mm).
No primeiro ano, as plantas sofreram stress térmico e hídrico durante grande parte do período de enchimento do grão, enquanto o segundo ano foi bastante ameno, com condições extremas apenas na última fase de maturação do grão.
Resultados
Na Tabela 3 apresentam-se os resultados médios de duração do enchimento do grão e peso de mil grãos para as diferentes variedades provenientes do ensaio de Elvas e Beja, nos dois anos agrícolas.
Tabela 3: Valores médios de duração do período de enchimento do grão e peso de mil grãos das variedades estudadas nos quatro ensaios realizados.
O segundo ano foi mais favorável à correta formação e desenvolvimento do grão, pois provocou um alongamento deste período para todas as variedades nos dois locais de ensaio. Este alongamento apenas se refletiu no peso de mil grãos das variedades do ensaio de Elvas. Em Beja esta variação não se verificou, talvez, devido à subida brusca da temperatura máxima com menores valores de precipitação verificadas no enchimento do grão.
Nas tabelas 4 e 5 apresentam-se os resultados da análise de variância dos parâmetros de qualidade, para os dois anos analisados em separado. Os valores de F mostram que os três fatores (variedade, fertilização e local) influenciaram significativamente os parâmetros de qualidade estudados, tanto de forma individual como através das suas interações, ou seja, a resposta das variedades e dos tratamentos divergiu nos dois locais (interação genótipo x ambiente).
Tabela 4: Análise de variância (valores do teste F) do peso de mil grãos (PMG), massa do hectolitro, teor de proteína e vitreosidade do grão para o ano de 2018/19. Modelo com três fatores de variação (variedade, fertilização, local) e suas interações.
Tabela 5: Análise de variância (valores do teste F) do peso de mil grãos (PMG), massa do hectolitro, teor de proteína e vitreosidade do grão para o ano de 2019/20. Modelo com três fatores de variação (variedade, fertilização, local) e suas interações.
O local, estando implícitas as diferenças meteorológicas observadas durante o ciclo da cultura, foi o fator que mostrou ter maior influência na variação de todos os parâmetros de qualidade, com exceção do teor proteico observado no ensaio de 2019/20.
Em 2018/19, os valores de proteína, vitreosidade e hectolitro foram mais elevados em Elvas e o peso de mil grãos em Beja (Figuras 4a e b). Em 2019/20 a vitreosidade, o hectolitro e o peso de mil grãos foram mais elevados em Elvas do que em Beja (Figuras 5a e b).
A variedade foi o segundo fator mais determinante para explicar a variação do peso de mil grãos e massa do hectolitro nos dois anos, bem como a proteína e a vitreosidade em 2019/20 (Tabelas 4 e 5).
Don Ricardo destacou-se pelo peso de mil grãos nos dois locais e nos dois anos, juntamente com a variedade Fado em Beja (em 2018/19 e 2019/20) e Trimulato em Elvas (em 2019/20) (Figuras 4b e 5b).
As variedades Vadio e Claudio destacaram-se ao nível da massa do hectolitro em todos os ensaios, juntamente com as variedades Celta e Don Ricardo apenas em dois dos ensaios (Figuras 4b e 5b), o que é um bom indicador da sua adaptação aos dois ambientes.
Relativamente à vitreosidade, característica cujo decréscimo leva ao enfraquecimento da estrutura do grão devido ao aparecimento de espaços preenchidos por ar, verificou-se que os ensaios de Beja apresentam maiores diferenças entre variedades, com Don Ricardo a destacar-se nos dois anos e as variedades Trimulato e Celta em 2018/19. Em Elvas ocorreram menores diferenças entre variedades (quase todas com vitreosidade acima de 90), com exceção de Claudio, Sculptur, Anvergur (variedades de ciclo mais longo) que tiveram valores significativamente inferiores no ensaio de 2019/20, como também se verificou nos ensaios de Beja (Figura 4a e 5a).
Figura 4a, b, c e d. Resultados dos ensaios de Elvas (E) e Beja (Bj) em 2018/19. Valores médios a) de proteína e vitreosidade e b) de peso de mil grãos e hectolitro das diferentes variedades. Valores médios c) de proteína e vitreosidade e d) de peso de mil grãos e hectolitro dos diversos tratamentos de fertilização.
Os fatores, local seguido da fertilização, foram os que mais influenciaram a variação da proteína em 2018/19 (Tabela 4). A importância do local neste ano foi uma consequência das diferenças nas produtividades do ensaio de Beja e Elvas (dados não apresentados), que originaram menores teores proteicos em Beja (Figuras 4a) devido ao efeito de diluição da proteína pela maior quantidade de grãos. Em 2019/20 os fatores mais determinantes na variação da proteína foram a fertilização e a variedade (Tabelas 5). A variedade Trimulato apresenta, de modo consistente, maior valor de proteína nos dois locais e nos dois anos (Figuras 4a e 5a).
Ao nível da fertilização, verifica-se que as aplicações mais tardias de azoto (T2, T3 e T4) conduziram a uma maior mobilização do azoto para o grão e, consequentemente, maiores valores de proteína e vitreosidade nos dois anos (Figuras 4c e 5c). Portanto, grãos com maior teor proteico ficam mais protegidos contra a perda de vitreosidade. A sua influência, apesar de menor, também foi significativa no peso de mil grãos e massa do hectolitro (Figuras 4d e 5d).
Figura 5a, b, c e d. Resultados dos ensaios de Elvas (E) e Beja (Bj) em 2019/20. Valores médios a) de proteína e vitreosidade e b) de peso de mil grãos e hectolitro das diferentes variedades. Valores médios c) de proteína e vitreosidade e d) de peso de mil grãos e hectolitro dos diversos tratamentos de fertilização.
Conclusões
Os resultados obtidos nos dois anos de ensaios demonstram a enorme influência da variabilidade climática, típica do clima mediterrânico do sul de Portugal na qualidade do trigo duro.
Para além disso, apesar de haver uma forte componente genética (influência da variedade) na determinação dos quatro parâmetros de qualidade do trigo duro analisados (peso de mil grãos, massa do hectolitro, teor de proteína e vitreosidade do grão) a fertilização, com épocas de aplicação mais tardias no ciclo de desenvolvimento da cultura, mostrou-se indispensável à expressão do potencial genético de qualidade. Há, ainda, uma enorme influência ambiental que, neste estudo, se sobrepôs ao próprio efeito varietal.
As interações variedade x local e tratamento x local influenciaram significativamente os parâmetros de qualidade, o que demonstra a complexidade da expressão do potencial de qualidade do trigo duro.
Agradecimentos
Este estudo foi suportado pelo projeto Valorização do Trigo Duro de Qualidade Superior para o Fabrico de Massas Alimentícias, Ação 1.1 – Grupos Operacionais, PDR2020
COTR. (2020) – Sistema Agrometeorológico para a Gestão da Rega no Alentejo (SAGRA). Centro Operativo e de Tecnologia de Regadio (COTR), Quinta da Saúde, Beja, [cit. 2020-10-04]. <http:// www.cotr.pt/servicos/sagranet.php >